segunda-feira, 20 de julho de 2009

ENTREVISTA SOBRE MENTIRA À REVISTA VEJA

O americano David Livingstone Smith acostumou-se a polêmicas ao defender suas idéias. Afinal, propalar que o ser humano é mentiroso por natureza e que a mentira é útil à sociedade vai contra o senso comum. Aos 53 anos, diretor do Instituto de Ciência Cognitiva e Psicologia Evolutiva da Universidade de New England, nos Estados Unidos, ele defende que o mundo seria um caos se todos decidissem falar a verdade. Em seu livro Por que Mentimos – Os Fundamentos Biológicos e Psicológicos da Mentira (Editora Campus/Elsevier), lançado no fim de 2005 no Brasil, Smith afirma que somos programados para enganar desde os primórdios da humanidade. Seja para nos proteger, seja para levar vantagem. Quem mente com desenvoltura, diz ele, pode até sobressair entre os demais. O exemplo clássico é o dos políticos, que mentem por profissão e continuam tendo o ouvido de milhares de pessoas. O motivo? A dissimulação é parte da vida em sociedade e são raras as pessoas com o dom de distinguir um comportamento normal da mentira patológica.

Veja – Por que mentimos?
Smith – A mentira está por toda parte. Ela é normal. Todos mentimos e quem diz o contrário mente. Temos dificuldade em nos reconhecer como mentirosos porque há um julgamento moral contrário. Mentimos para obter vantagens e para nos proteger de algo, o que significa que estamos, de certa forma, passando a perna em alguém. Quem mente bem costuma se dar melhor do que quem não consegue fazê-lo.
Veja – Por quê?
Smith – Porque a mentira traz vantagens indiscutíveis. Bons mentirosos são mais populares e bem-sucedidos. Alguns conseguem enganar por muito tempo e atingem status social mais alto e até melhores salários. A mentira está em toda a natureza. Vírus enganam o sistema imunológico de seus hospedeiros, plantas dissimulam para se livrar de predadores, animais blefam para conseguir comida. Não é só uma questão de sobrevivência. É levar vantagem. E ser melhor do que os concorrentes. E assim é a vida humana também.
Veja – Então mentir é razoável?
Smith – A mentira é o pilar das relações sociais. Há pais que dizem: "Ensino meu filho a não mentir". Isso é falso. Somos nós que os ensinamos a não dizer a verdade. Ensinamos que é errado dizer à vovó que os seios dela são caídos. Ensinamos as crianças a agradecer pelo presente de Natal mesmo quando elas o odeiam. Isso pode ser chamado de "tato", "boas maneiras", mas são mentiras. A mentira não é boa ou ruim, ela é necessária. Imagine o mundo em que todos fossem verdadeiros uns com os outros. Seria o caos.
Veja – Quem mente bem é mais inteligente?
Smith – Eles são socialmente mais inteligentes. Conseguem perceber o que a outra pessoa quer ouvir, o que é pertinente contar naquela hora, têm sensibilidade para notar a vulnerabilidade alheia. São melhores manipuladores. Mas é preciso dizer que mentimos melhor quando não sabemos que estamos mentindo. Ou seja, quando enganamos a nós mesmos. A melhor mentira é contada por aquele que acredita no que está dizendo.
Veja – É o caso dos políticos?
Smith – Políticos são mentirosos profissionais. Eles mentem habilmente e, na maioria das vezes, têm consciência disso. O que eles fazem é captar com precisão os anseios do eleitorado. Eles não estão preocupados se vão conseguir fazer o que prometem ou não. O político mente para se dar bem. Quando ele acredita na própria mentira, seu poder de persuasão se torna infinitamente maior. Hitler foi um exemplo disso. Era um enganador brilhante. E claramente acreditava no que dizia.
Veja – Quando os políticos são apanhados em uma mentira, eles se safam mais facilmente do que as outras pessoas. Por quê?
Smith – É uma questão de sobrevivência. Um político mentiroso quando é obrigado a ir à televisão para se desculpar por suas lorotas está perdido. Ele não ganha nada com isso. Não há nada de moralmente superior no fato de confessar uma mentira, até porque, quando os políticos o fazem, é de modo muito calculado. Mentir convincentemente e ser pego é coisa rara para um político. Como profissionais no assunto, eles se tornaram experts em respostas evasivas e desculpas esfarrapadas para encobrir inverdades.
Veja – Por que acreditamos nas mentiras dos políticos mesmo sabendo que eles são treinados para nos enganar?
Smith – Porque é mais fácil e seguro para nós mesmos nos convencermos delas. Quando alguém diz com convicção que vai melhorar a sua vida, como não querer acreditar nisso? Podemos até desconfiar em um primeiro momento, mas, como é um alento crer nessa hipótese, acabamos nos convencendo. A sensação de prazer trazida por acreditar em algo é inebriante. É um grande prazer para os americanos acreditar que são superiores ao resto do mundo. Se pensassem nisso por cinco minutos, saberiam que não é verdade. Mas não o fazem porque isso lhes traz muita satisfação. É impressionante como nossas escolhas sobre aquilo em que acreditamos são baseadas no que nos faz sentir bem, importantes, esperançosos. É com isso que os políticos jogam.
Veja – Qual a diferença entre uma mentira contada por um político e a contada por uma pessoa comum?
Smith – A contada por políticos tem conseqüências mais graves, mas, na média, não há muita diferença. Passamos a vida fabulando coisas, uma boba aqui, outra mais inocente ali, e as grandes também. É preciso ter em mente que não se trata de maniqueísmo. Da mesma maneira que os políticos mentem, nós também nos enganamos porque queremos acreditar em suas mentiras.
Veja – Como isso se processa na mente humana?
Smith – O princípio de tudo é o auto-engano. Como sabemos que mentimos para nós mesmos, inconscientemente criamos um mecanismo de defesa que nos impede de nos aprofundar muito naquele assunto. Se o fizermos, nós mesmos ficaremos expostos como mentirosos. É nesse sentido que somos programados para aceitar mentiras. Quando o presidente George W. Bush afirmou que existiam armas de destruição em massa no Iraque, ele talvez tenha mesmo se convencido disso. A realidade é que os métodos para entender como a mente processa a mentira ainda são muito falhos.
Veja – O ex-presidente Bill Clinton mentiu sobre o caso com a estagiária Monica Lewinsky, sobre fumar maconha e não tragar, sobre casos de sua infância. Ainda assim, é um dos maiores líderes mundiais. Por que esses fatos não parecem manchar sua biografia?
Smith – O exemplo de Clinton não serve para o resto do mundo. Para os americanos, a moralidade se resume a sexo e Deus. Quando alguém se mete em algo assim, os americanos conseguem perdoar. O conceito de mentira é muito flexível para os políticos. Ao se defender, Clinton inventou um padrão técnico para encobrir uma mentira. Ele resolveu dar uma definição muito pessoal sobre o que efetivamente era fazer sexo. O fato é que, na maior parte das vezes, no fundo, sabemos que os políticos mentem. No fundo também é isso que esperamos deles.
Veja – Como saber que um político está mentindo?
Smith – Isso é muito difícil. Pesquisas mostram que apenas um em 1 000 indivíduos consegue detectar sinais de mentira em outra pessoa. No caso dos políticos, profissionais treinados só conseguem identificar mentiras em 10% dos casos. Políticos são brilhantes em nos distrair com o que dizem. Aqueles que não conseguem mentir bem nunca chegam lá. É uma tragédia pensar que a política é uma das atividades mais vitais nas sociedades em todo o mundo pois é uma das mais irracionais e desonestas que existem.
Veja – Detectar uma mentira depende de quê? Sensibilidade? Inteligência?
Smith – As pessoas que prestam atenção à linguagem corporal, ao tom de voz, são melhores do que as que escutam as palavras. É simples assim. Algumas poucas pessoas fazem isso naturalmente, a maior parte não consegue. Podemos até achar algo estranho, mas somos enganados pelas palavras. De fato, deveríamos prestar mais atenção ao nosso próprio instinto. Existem métodos empíricos, como os do pesquisador Paul Ekman, da Universidade da Califórnia, há trinta anos no ramo. Ele analisa os movimentos dos olhos, a respiração e os sinais verbais. No entanto, quando estamos envolvidos emocionalmente, perdemos a objetividade para perceber tudo isso. Na política estamos quase sempre envolvidos emocionalmente.
Veja – Não existe política sem mentiras?
Smith – Infelizmente, não. A democracia é algo maravilhoso, mas funciona por um processo de venda e manipulação. Nesse processo, a mentira é intrínseca. A única proteção que temos contra isso é sermos céticos, críticos e podermos contar com uma imprensa justa, livre e que defenda os cidadãos.
Veja – Quando alguém diz que "não sabe de nada" sobre um fato em que todas as evidências provam o contrário, isso é mentir?
Smith – Qualquer coisa feita para iludir é uma mentira. Omitir-se ou inventar um padrão técnico para se explicar sobre algo é mentira, sim. As pessoas usam essas coisas apenas para escapar e, efetivamente, escapam.
Veja – Existem meia mentira e meia verdade?
Smith – Algumas vezes mentimos dizendo a verdade. Digamos que eu não queira que você saiba algo sobre mim. Posso relatar esse dado de uma maneira tão exagerada que você o desconsideraria. Não menti, mas você não acreditou. Ou seja: manipulei. Existem graus de distorção no que dizemos uns aos outros, mas acho que o que caracteriza a mentira é fazê-lo com o objetivo de vantagem.
Veja – Existem mentiras aceitáveis?
Smith – Claro. Falar com alguém de quem você não gosta, omitir seu real estado de espírito, dizer que a pessoa está magra, quando na verdade ela está gorda, tudo isso são mentirinhas do dia-a-dia que fazem parte dos padrões sociais de convívio. A mentira ocorre naturalmente a todos nós, e muitas vezes não sabemos que estamos mentindo.
Veja – Com que freqüência as pessoas mentem?
Smith – Há uma pesquisa relevante feita pelo psicólogo Robert Feldman, da Universidade de Massachusetts, mostrando que as pessoas contam três mentiras a cada dez minutos de conversa. É interessante, mas é uma definição estreita da mentira. Não se mente só com palavras. Um político, querendo esconder alguma coisa ou estando inseguro do que diz, pode chegar a um palanque ou a um debate na TV e falar de maneira pomposa, mostrar-se indignado, aparentar confiança. Ele vai convencer muita gente. Precisamos observar o comportamento desonesto de forma muito mais abrangente. E, quando o fizermos, descobriremos que o ato de mentir é muito mais amplo do que se imagina.
Veja – Onde se mente mais: na política ou nos casamentos?
Smith – Eu diria que é na política. O fato é que, quanto mais interesses comuns as pessoas tiverem, menos terão de mentir umas para as outras. Se estivermos do mesmo lado, ainda assim mentiremos um para o outro, mas menos do que alguém que queira me vender um carro usado danificado. A política é um sujeito tentando se vender a você. Então, a mentira é central.
Veja – Quando mentimos mais?
Smith – Em geral, quando queremos algo de outra pessoa e esta não quer nos dar. Nas conquistas amorosas, ocorre sempre. Queremos parecer mais atraentes sexualmente ou mais inteligentes do que somos. Nas relações de trabalho, mentimos sobre nossas habilidades e competências. É crucial saber que isso ocorre involuntariamente. É como respirar.
Veja – Quem mente mais, o homem ou a mulher?
Smith – Os homens tendem a dizer que as mulheres mentem mais, e vice-versa, mas não acho que exista alguma evidência disso. Acredito que mentem igualmente. Tudo depende do que se quer obter.
Veja – Nascemos mentirosos?
Smith – Contar mentiras é uma tendência tão internalizada no ser humano como a capacidade de falar e caminhar. Não temos a escolha de não mentir. Quem não mente, no sentido estrito da palavra, são os autistas. Para que possamos mentir, precisamos perceber como as pessoas nos vêem. Para quem não entende isso, como os autistas, a idéia de esconder a verdade não faz sentido. Não é por uma superioridade moral, mas por uma deficiência neurológica que os torna inábeis para perceber essa sutileza. Então, com exceção dos autistas, somos todos mentirosos por natureza.
Veja – O senhor mente muito?
Smith – Sou péssimo mentiroso.
Veja – Mentiu nesta entrevista?
Smith – Fiquei aqui, ao telefone, tentando dar a você a impressão de ser melhor do que sou realmente. É uma mentira, não é?

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