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Entrevista: Massataka Ota O ódio come a gente Thaís Oyama Antonio Milena
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Na manhã de 29 de agosto de 1997, o menino Ives Ota, então com 8 anos de idade, foi seqüestrado por três homens quando brincava na sala de sua casa, na Vila Carrão, Zona Leste de São Paulo. Na tarde do mesmo dia, estava morto. Foi assassinado com dois tiros no rosto porque reconheceu um de seus seqüestradores, Paulo de Tarso Dantas, como um dos policiais militares que trabalhavam como seguranças nas lojas de seu pai (os outros dois eram Sérgio Eduardo Pereira de Souza, também policial, e Sílvio da Costa Batista), o comerciante Massataka Ota. Atualmente, Ota, nascido na província japonesa de Okinawa, dirige uma fundação que se dedica a ajudar, além de crianças carentes, criminosos condenados. Pelo menos duas vezes por mês, ele visita o presídio militar Romão Gomes levando sementes e implementos agrícolas. Dois dos assassinos de Ives, os ex-PMs, estão presos lá. Ota já pensou em matá-los, mas hoje diz tê-los perdoado. Nesta entrevista, conta sua jornada do ódio e do desespero ao perdão. Veja – Por que o senhor resolveu ajudar o presídio que abriga os assassinos do seu filho? Ota – Uma vez tive de ir lá prestar um depoimento. Notei que ali existia uma área muito grande, de uns 3 alqueires e meio, e os presos ficavam só andando para lá e para cá. Pensei que poderia ser bom se eles mexessem com agricultura. O homem parado só pensa em coisas erradas. E, quando mexe com a natureza, ele muda. Eu acredito que a natureza é Deus. Então, fui atrás de doação de sementes, enxadas, e começamos a notar que os presos passaram a ter um pouco mais de alegria. Veja – Por que uma pessoa que perdeu o filho em circunstâncias tão trágicas se preocuparia em dar alegria a criminosos? Ota – É esquisito, não é? Mas eu acho que, se você trata bem uma pessoa, ela retribui. E se a gente não recuperar os criminosos, eles vão sair dali mais violentos. Se, de 350 detentos, conseguirmos recuperar dez, são dez pessoas a menos para cometer violências. Eu tenho de me preocupar com o futuro das minhas filhas. O que eu passei, já passei. Não adianta a gente ficar de braços cruzados só jogando pedra no governo. É preciso tentar recuperar o ser humano para que, mais para a frente, não tenha mais violência. Veja – O senhor já encontrou os assassinos do seu filho? Ota – Várias vezes, mas eles nunca me olham. Ficam olhando para o chão. Veja – Já falou com eles? Ota – Eu falo com eles, mas eles não falam comigo. Veja – O senhor disse que já os perdoou. Nunca chegou a sentir ódio deles? Ota – Senti muito ódio. Mas o que adianta você ficar com ódio, colocar uma arma na cintura e ir ao julgamento para matar?... Veja – O senhor chegou a pensar em fazer isso? Ota – Cheguei. Na véspera do julgamento, eu não dormi. Passei a madrugada toda sentado no sofá, com a arma na cintura, esperando o dia clarear. Veja – Chegou a levar a arma para o tribunal? Ota – Não. Um pouco antes de ficar claro, pensei: eu nunca atirei, nem sei atirar. O que é que eu estou fazendo com essa arma na cintura? Comecei a rezar. Perguntei a Deus por que Ele havia deixado que isso acontecesse. Aí, pedi para que Ele me ajudasse. Também perguntei a mim mesmo se o Ives gostaria do que eu iria fazer. Pensei na minha mulher, nas minhas filhas. Pensei que eu iria destruir a minha família. Resolvi deixar a arma em casa. Veja – O que aconteceu quando o senhor encontrou com os seqüestradores no julgamento? Ota – Quando eu cheguei ao fórum, eles estavam numa sala, os três juntos. O juiz disse que, se eu quisesse, poderia vê-los pelo olho mágico. Só que, em vez de olhar pelo olho mágico, eu fui lá e abri a porta. Fiquei frente a frente com os três. Eles abaixaram a cabeça. Eu cutuquei um de cada vez e falei: "Olha para mim, olha para o pai do garoto que vocês mataram". Eles não olhavam. Aí, eu disse: "Vocês mataram meu filho, mas eu não vou matar vocês. Vim aqui para perdoar vocês". Eu não tinha planejado falar aquilo, mas saiu. Naquele momento, eu nem sabia por que eu falava aquilo. Regina Agrella/Folha Imagem
| Repr. Rubens Carvalho/F. Imagem
| "EU QUERIA QUE UM DIA ELES ME PEDISSEM PERDÃO PELO QUE FIZERAM" (À ESQUERDA, O SEQÜESTRADOR SÍLVIO DA COSTA BATISTA; À DIREITA, SÉRGIO PEREIRA DE SOUZA) |
Veja – Era sincero? Ota – Naquele momento, não sei. Veja – Quando o senhor achou que conseguiu perdoá-los de verdade? Ota – Foi quando um programa de TV me convidou para um encontro com eles. Aceitei justamente porque queria saber se, de fato, eu conseguiria encará-los sem ódio. Os dois militares não aceitaram o convite do programa. Fui para Avaré, para me encontrar com o terceiro seqüestrador, que é civil. Eu estava tremendo. Quando senti que ele já estava no corredor, vindo na minha direção, fiquei com medo. Pensei que fosse ter vontade de esganá-lo. Mas quando ele chegou à minha frente, o nervosismo passou. Aí, comecei a falar, falar e saí de lá muito aliviado. Foi quando tive a certeza de que eu tinha perdoado. Veja – Mas o senhor defende a prisão perpétua para crimes hediondos como o que eles cometeram. Isso não é uma contradição? Ota – Não. Acho que perdoar não é dizer: "Soltem os assassinos do meu filho". Perdoar é tirar o ódio de dentro de você. É não querer mais o mal da pessoa que fez mal para você. Então, perdão é uma coisa e justiça é outra. E a justiça tem de ser cumprida. Veja – O senhor acha que, no caso de seu filho, a justiça foi cumprida? Ota – Eles pegaram 43 anos de prisão e eu espero que eles cumpram os 43 anos. Mas eu não concordo com a lei quando ela beneficia um homicida só porque ele é um réu primário. Então, quer dizer que a Justiça tem de esperar que ele mate pela segunda vez para ficar preso? Acho isso muito errado. Desse jeito, as pessoas não vão pensar duas vezes antes de cometer um crime. Eu defendo a prisão perpétua por isso: as pessoas vão pensar mais antes de fazer as coisas. Hoje, todo mundo sabe que, se for condenado a trinta anos, vai cumprir dez ou oito, no máximo. Veja – Como o senhor recebeu a notícia da morte de seu filho? Ota – Foi esquisito porque, quando os policiais me chamaram para dar a notícia, eu estava tão destruído que já nem entendia as coisas direito. Eu me lembro que o delegado me chamou para ir até a Delegacia Anti-Seqüestro. Falou comigo, chegou a me mostrar o silenciador, mas eu estava que nem um zumbi. Não entendi o que ele me disse, acho que não queria acreditar. Tanto que, quando eu voltei da delegacia, minha mulher perguntou o que eles tinham dito e eu disse que eles não tinham nenhuma notícia ainda. Veja – Quando o senhor entendeu o que havia acontecido? Ota – Só caí em mim um pouco mais tarde. Já era de madrugada quando um concunhado meu chegou em casa e disse: "Encontraram o Ives, mas ele já estava morto há muito tempo". Eu saí para fora do apartamento e dei um grito bem grande, alto. Todos os vizinhos acordaram. Eu gritava, gritava. Para mim, era como se o mundo estivesse acabando. Eu sempre acreditei que poderia trazer meu filho são e salvo para casa e agora eu iria trazê-lo dentro de um caixão. Veja – Em que o senhor pensava nos dias que se seguiram ao enterro de seu filho? Ota – Eu não pensava em nada. Fiquei feito um doido. À noite, não conseguia dormir. Quando dormia, acordava com pesadelos: o Ives me chamando, pedindo socorro. Aí, eu levantava e vinha a imagem daquelas três pessoas. De dia, era igual. Não conseguia trabalhar, não conseguia comer. Ficava só pensando coisas horríveis: às vezes, eu tinha vontade de ir buscar os filhos deles. Veja – Para quê? Ota – Para fazer a mesma coisa que fizeram com o meu. Eu estava desesperado. Veja – E sua mulher, o que dizia? Ota – Ela dizia que eu tinha de perdoar. Quando ela falou isso pela primeira vez, pensei que estivesse maluca. Cheguei a ficar preocupado mesmo, achando que a morte do Ives a tivesse enlouquecido. Mas ela foi uma grande mulher, e muito sábia. Foi o sustentáculo da nossa família. Se não fosse ela, eu acho que teria feito uma besteira. Tenho de elogiar muito a minha mulher. Veja – Qual a melhor lembrança que o senhor tem de seu filho? Ota – Tenho muitas. Lembro do primeiro passo que ele deu, da primeira palavra que ele falou. Às vezes, olho meus dois sobrinhos jogando bola e me dá uma saudade. Poderiam estar os três juntos... Aí eu saio de perto e fico pensando que o Ives me deixou muitas lembranças boas, me ensinou muita coisa. Eu falo com ele sempre: "Você pode ficar tranqüilo. Seu pai é um homem digno e você pode ter orgulho dele". Depois, eu tive uma grande felicidade. Você sabe que a minha esposa não conseguia engravidar depois que o Ives nasceu? A gente tentava o terceiro filho e não dava certo. Engraçado que, seis meses depois que o Ives morreu, ela engravidou. Então, eu ganhei uma nova filha. Ela vai fazer 3 anos em outubro e é muito bonitinha e inteligente. Eu sou um homem muito feliz. Veja – Perdoar ajudou? Ota – Ajudou. Porque o ódio come a gente. Quando você consegue desculpar sinceramente a pessoa que lhe fez mal, você se sente muito melhor. Perdoar não é só bom para quem é perdoado. É bom para quem perdoa também. Veja – O senhor disse que recentemente tentou novamente conversar com os assassinos de seu filho e eles se recusaram. O que ainda gostaria de dizer para eles? Ota – Eu queria que um dia eles me pedissem perdão pelo que fizeram. Veja – Por que o senhor considera isso importante? Ota – Não sei bem por quê. Mas eu queria. Acho que para poder chegar em casa e dizer para a minha mulher: "Olha, hoje fui lá, conversei com eles, e eles pediram perdão". Acho que ela iria ficar contente. |
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